Amor e política
“A monogamia é um dispositivo colonial para o controle dos corpos...” – arrasta pra cima!
Já faz tempo que a vulgata de esquerda circulante pelas redes sociais mais se parece com um gerador de lero-lero. Reúne-se, sem rigor, certas palavrinhas mágicas para dar ares de profundidade a um discurso banal: “colonial”, “dispositivo”, “controle”, “atravessamentos”, “sub-reptício” e, o meu favorito, “projeto”. Eu amo a palavra-vazia “projeto”! Com ela, explica-se todos os males do mundo como a intenção oculta de um sujeito indeterminado.
Mas este não é um texto sobre a falta de critério analítico e conceitual das redes sociais, antes sobre um lugar-comum bastante específico que grassa por aí: uma suposta crítica à esquerda da forma monogâmica de relacionamento. Em suma, dizem os autoproclamados libertários-de-corpos-descolonizados, o desejo sexual deveria ser perseguido a todo custo, sem restrições ou constrangimentos. Em cada uma das muitas versões desta tese, a monogamia é uma instituição imposta por um ator diferente. Pode ser o cristianismo, a burguesia, o ocidente, o tabu do incesto, mas sempre há uma entidade metafísica empata-foda contra a qual devemos nos insurgir. Ou melhor, devemos resistir a seu “projeto colonial” (veja como soa melhor e mais viral).
Tudo isso é asneira. A monogamia não é nem um projeto, nem colonial, e muito menos cristã, ocidental ou burguesa. A monogamia é a única estrutura de parentesco verdadeiramente universal, como ensinou Lévi-Strauss[i], presente nos ameríndios da Amazônia, nos polinésios de Nova Guiné, nos cabila da Argélia e em todos os outros povos já etnografados do passado e do presente. Muito antes de Jesus andar na água ou da primeira fábrica surgir em Manchester a humanidade já havia consagrado a relação monogâmica como elemento básico do clã. A não-monogamia, esta sim, é produto das sociedades industriais urbanizadas da Modernidade, mas não é aí que reside seu problema.
O problema fundamental é subjetividade neoliberal que anima as críticas à monogamia. Seu subtexto é uma espécie de ética consumista na qual o prazer deve ser ampliado sem limites, como se a vida amorosa fosse um shopping center de relações fugazes e superficiais. Não, um rotundo não! Há muito mais no amor do que experiências imediatas de prazer instantâneo, há um universo inteiro de satisfações sublimadas, históricas, de longo prazo. Elas requerem abnegação, sacrifício, comprometimento, firmeza. Palavras raras no diminuto rol de afetos da vida contemporânea.
Convém lembrar que o desejo, termo tão empregado por aí, é mais ambíguo que piada de quinta série. É verdade que o desejo aponta para a satisfação de nossas faltas, para a realização de sonhos e prazeres. Mas o desejo também nos guia para a ruína, pois não desejamos apenas a felicidade, igual queremos nos sabotar, nos privar, nos malhar, nos matar. Há muitos desejos em cada um de nós, frequentemente contraditórios entre si. O desejo por prazeres instantâneos, legítimo e natural, choca-se frontalmente com o desejo por prazeres longevos e duradouros. Viver é saber navegar seus desejos, seguir um em certa hora, passar a outro noutra hora. Se há uma lição-mestra da psicanálise é esta: nem tudo aquilo que é seu quer o seu bem, mesmo os mais íntimos e ardentes desejos.
Amor é trabalho. É semeadura do campo, adubo do solo, rega das mudas, controle de pragas, poda de galhos e, de quando em quando, colheita dos frutos. Para que a colheita se repita, é necessário passar por todo o processo mais uma vez. O amor, assim, requer uma mentalidade histórica, que encadeia os atos do presente com os eventos do futuro. A subjetividade neoliberal não concebe esta mentalidade, pois aprisiona o indivíduo em sua própria experiência imediata, tornando-o incapaz de ir além de si mesmo para construir, com um outro, o Nós. Há duas dimensões da vida capazes de construir o Nós: a política e o amor.
O amor, como a política, é uma experiência radical de alteridade, como ensina outro francês, desta vez Alain Badiou. Abertura radical para outro que não acontece sem imprevistos ou percalços, mas apesar deles, e muito menos rapidamente, mas é fruto de persistência e paciência.
Eu não sou um virtuoso do amor que defendo. Muitas vezes fui refém dos meus desejos e busquei prazeres instantâneos. Mas sei que não há nada mais distante dos valores básicos da esquerda do que levar a vida amorosa como um baile de máscaras, cheio de sujeitos sem-rosto, iguais, descartáveis e substituíveis entre si. Há um poema de Neruda sobre não terminar em si mesmo, sobre existir através dos outros. O poema é sobre política, mas poderia ser sobre o amor, pois na política, como no amor, é necessário tomar partido.
[i] “A Família”, de Lévi-Strauss, é um dos textos mais importantes da história da antropologia e muito fácil de achar na internet. Não é longo nem pesado de ler.